terça-feira, 9 de agosto de 2011

Confissão. Dela.


“Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros.” (Caio Fernando Abreu)



A perfeição está longe de todas as pessoas. Dela também.

Mas a diferença dela para todos os outros é que ela não deseja a felicidade de todas as pessoas. Há aqueles que muito ama e os quer bem. Há os indiferentes e os quer bem. Há os que não quer bem. Esses últimos a feriram tão imensamente que a distância que guarda não basta. Não quer os seus sorrisos também, já que os dela foram roubados. Para sempre.

Descobriu que a inércia é o único bem que pode e consegue fazer para os últimos. Tenta esquecer, imagina que o ferimento suportado a duras penas pode ter sido fruto de um grande orgulho que guarda dentro de si. Tenta mudar a ótica. Tentativas infrutíferas. Em sua inércia, não quer os sorrisos dos últimos.

Quando as suas feridas são reabertas, grita no seu quarto, com cortinas fechadas e luz apagada. No silêncio dos seus gritos abafados que é sua agressividade contida pelos que dizem que o certo é perdoar, dentre tantas tentativas perdidas, engole seco e as lágrimas sangram. Sai de casa como se nada tivesse acontecido.

Agora ela só quer descobrir como fechar essas feridas definitivamente. Nessa batalha pelo certo e errado, loucura tem sido mais forte do que ela. Tem sido o único caminho viável. Remédio, gaze e sangue. Cicatriz. Sua vida ficou marcada e seu sorriso foi roubado. Onde estão as respostas?

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Anotações Insensatas, Caio Fernando Abreu

Mas não se pode agir assim, a amiga avisou no telefone. Uma pessoa não é um doce que você enjoa, empurra o prato, não quero mais. Tentaria, então, com toda a delicadeza possível, sem decidir propriamente decidiu no meio da tarde — uma tarde morna demais, preguiçosa demais para conter esse verbo veemente: decidir. Como ia dizendo, no meio da tarde lenta demais, escolheu que — se viesse alguma sofreguidão na garganta, e veio — diria qualquer coisa como olha, tenho medo do normal, baby.

Só que, como de hábito, na cabeça (como que separada do mundo, movida por interiores taquicardias, adrenalinas, metabolismos) se passava uma coisa, e naquele ponto em que isso cruzava com o de fora, esse lugar onde habitamos outros, começava a região do incompreensível: Lá, onde qualquer delicadeza premeditada poderia soar estúpida como um seco: não. E soou, em plena mesa posta.

Tanto pasmo, depois. Sozinho no apartamento, domingo à noite. Todas as coisas quietas e limpas, o perfume adocicado das madressilvas roubadas e o bolo de chocolate intocado no refrigerador — até a televisão falar da explosão nuclear subterrânea. Então a suspeita bruta: não suportamos aquilo ou aqueles que poderiam nos tornar mais felizes e menos sós. Afirmou, depois acendeu o cigarro, reformulou, repetiu, acrescentou esta interrogação: não suportamos mesmo aquilo ou aqueles que poderiam nos tornar mais felizes e menos sós? Não, não suportamos essa doçura.

Puro cérebro sem dor perdido nos labirintos daquilo que tinha acabado de acontecer. Dor branca, querendo primeiro compreender, antes de doer abolerada, a dor. Doeria mais tarde, quem sabe, de maneira insensata e ilusória como doem as perdas para sempre perdidas, e portanto irremediáveis, transformadas em memórias iguais pequenos paraísos-perdidos. Que talvez, pensava agora, nem tivessem sido tão paradisíacos assim.

Porque havia o sufocamento daquela espécie de patético simulacro de fantasia matrimonial provisória, a dificuldade de manter um clima feito linha esticada, segura para não arrebentar de súbito, precipitando o equilibrista no vazio mortal. Cheio de carinho, remexeu no doce, sem empurrar o prato. Preferia a fome: só isso. Pelo longo vício da própria fome — e seria um erro, porque saciar a fome poderia trazer, digamos, mais conforto? — ou de pura preguiça de ter que reformular-se inteiro para enfrentar o que chamam de amor, e de repente não tinha gosto?

De onde vem essa iluminação que chamam de amor, e logo depois se contorce, se enleia, se turva toda e ofusca e apaga e acende feito um fio de contato defeituoso, sem nunca voltar àquela primeira iluminação? Espera, vamos conversar, sugeriu sem muito empenho. Tarde demais, porta fechada. Sozinho enfim, podia remexer em discos e livros para decidir sem nenhuma preocupação de harmonia-com-o-gosto-alheio que sempre preferira um Morrison a Manuel Bandeira. Sid Vicious a Puccini. A mosca a Uma janela para o amor, sempre uma vodca a um copo de leite: metal drástico. Era desses caras de barba por fazer que sempre escolherão o risco, o perigo, a insensatez, a insegurança, o precário, a maldição, a noite — a Fome maiúscula. Não a mesa posta e farta, com pratos e panelas a serem lavados na pia cheia de graxa — mas um hambúrguer qualquer para você que escrevo. Mas os escritores são muito cruéis, você me ama pelo que me mata com coca-cola no boteco da esquina, e a vida acontecendo em volta, escrota e nua.

Não muito confuso, assim confrontado com sua explícita incapacidade de lidar com. A palavra não vinha. Podia fazer mil coisas a seguir. Mas dentro de qualquer ação, dentes arreganhados, restaria aquela sua profunda incapacidade de lidar com. Um instante antes de bater outra, colocar uma velha Billie Holiday e sentar na máquina para escrever, ainda pensou: gosto tanto de você, baby. Só que os escritores são seres muito cruéis, estão sempre matando a vida à procura de histórias. Você me ama pelo que me mata. E se apunhalo é porque é para você, para você que escrevo — e não entende nada.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Qual é o seu caminho?


Tenho andado distraída por aí desviando dos pedaços de mim. Talvez, por isso mesmo, eu não tenha aparecido por aqui para escrever alguma coisa. É quase certo que seja esse o motivo que tenha me afastado das letras densas, do apanhado de pensamentos da caixola e das falas que me intrigam (muito provavelmente, só a mim mesma).

O batom vermelho, a roupa da estação, a bota de cano longo ou curto. Moda. Essas coisas todas não cansam a alma. Não a minha. Sequer são algo que eu considero verdadeiramente. Mas descansam. Fui me distraindo por essas beiradas. De fato, são um pouco de alguma coisa para alguém cuja auto-estima sempre foi das piores. Meu nome está nesta lista de chamadas, não é, consciência? Vamos valorizar um pouco do que é "legalzinho" no alto do momento mulherzinha, consciência?

Mas não me dou o trabalho de aprofundar psicologicamente isso ou aquilo no vestuário, vai. Eu só gosto de escrever. Quando me dou conta, o batom está na boca, a maquiagem está feita e a rua me espera. Percebi que recentemente cedi à fuga ao profundo porque vi o quanto a superfície é confortável. Meio mau isso, não é? Mas confesso que não tenho querido pensar muito não. Quase preguiça existencial.

Ai, ai, ai. Por outro lado, a minha consciência, só ela, é capaz de me conhecer como ninguém. Deixa-me caminhar sozinha por cinco, dez minutos - que sejam - por um mundo de frívolas diversões para que eu respire. Sabe que, por minhas próprias pernas eu caminho para mim mesma.

A cela da liberdade do "se conhecer cada vez mais" é meu caminho inexorável. É a única via possível para existir. Eis que o auto-conhecimento vem com uma profundidade que suga como o vácuo. A superfície azul e isenta que a maioria exala pelos poros não é real.

Se me distraio pelos cantos é para respirar, captar um pouco de ar pelos pulmões e dar mergulhos cada vez mais profundos naquilo que sou eu. Quem sabe um dia eu saberei responder a quem me perguntou "quem é Rebecca?" pois eu nunca sei.