segunda-feira, 25 de abril de 2011

Lya Luft, in Múltipla Escolha

“A falsa liberdade e a síndrome do ‘ter de’: essa é uma manifestação típica do nosso tempo, contagiosa e difícil de curar porque se alimenta da nossa fragilidade, do quanto somos impressionáveis, e da força do espírito de rebanho que nos condiciona a seguir os outros. Eu tenho de fazer o que se espera de mim. Tenho de ambicionar esses bens, esse status, esse modo de viver – ou serei diferente, e estarei fora.”

“O ‘ter de’ nos faz correr por aí com algemas nos tornozelos, mas talvez a gente só quisesse ser um pouco mais tranqüilo, mais enraizado, mais amado, com algum tempo para curtir as coisas pequenas e refletir. Porém temos que estar à frente, ainda que na fila do SUS.”

“Queremos mais que o possível, o espantoso: atividade, dinheiro, perfeição física, competitividade no trabalho, desempenho no amor, quem sabe até aquela foto na revista, a entrevista, os segundos de fama.

Mas sofremos a solidão no quarto, a ausência à mesa, a alegria perdida, o rosto onde nada combina, o silicone que escorre, a cicatriz que ressurge, e o tempo que ri de nós porque não o soubemos encarar. Enquanto nós, teatro mambembe de pequenos absurdos ainda não encontramos nem a roupa nem o texto, nem sabemos quem vai nos dirigir, platéia de nós mesmos, sentada no escuro.

Carentes de uma escuta interessada, não temos com quem falar. Para as decisões que devíamos tomar (às vezes o melhor é não fazer nada, mas refletir um pouco), precisamos de informação, que nasce da comunicação. Mas, no século dos mais altos decibéis, quando se trata da palavra somos desajeitados: temos medo de falar, e temor de silenciar.”

“As almas não vestem uniforme como nos antigos internatos ou nas festas modernas: somos individualidades entre as quais aqui e ali se constrói uma ponte, mas também se erguem paredes, que podem ser de vidro ou pedra bruta.”

“Quero falar, mas exijo ser inteiramente compreendido, e assim me frustro; prefiro calar para não assumir a responsabilidade sobre o efeito das minhas palavras, e assim me isolo.”

“Sempre seremos dois: ser um só é a ilusória promessa de um romantismo cruel.”

“Vasculhar a alma do outro pode trazer decepções, não porque ele cometa pecados extraordinários, mas porque esperávamos encontrar ali a perfeição, e o outro se sentirá agredido.”

“Ao contrário do que se pensa, do questionamento pode resultar, em vez de mais confusão, simplicidade. Sossego e recolhimento para lamber as feridas, alisar os entusiasmos, pentear as emoções, voltar para a vida fazendo bonito. Pois a gente merece. Num instante de felicidade, talvez se consiga voltar ao colo dos afetos, ou procurar novos se os velhos não nos fazem bem. Caminhamos com incertezas soprando seu bafo em nosso calcanhar – por isso, mesmo trôpegos e tímidos, somos uns heróis no cotidiano e no transcendental.

A gente só teria de ser um pouco mais despojado, menos desconfiado, mais aberto – atento para não se enredar em princípios mofados ou modernosos demais, que para ouvidos mais despreparados parecem os mais interessantes.

Sempre foi duro vencer o espírito de rebanho, mas esse conflito se tornou quase esquizofrênico: por um lado, precisamos ser como todo mundo, é importante adequar-se, pertencer; por outro lado, é necessário criar e preservar uma identidade e até impor-se, às vezes transgredir para sobreviver. Em geral acabamos descobrindo ou inventando nosso papel, nosso roteiro, nosso caminho.

Porém, no fundo de cada um aquele olho da dúvida entreabre sua pesada pálpebra e nos encara, compadecido ou provocador: como estamos vivendo a nossa vida, quanto valemos, quanto decidimos ou somos tangidos, quanto estamos conscientes do nosso próprio drama e fraqueza, mas também da nossa força?

Em que medida prevalece em nós a vontade ainda infantil de que outros resolvam os problemas, ou quanto curtimos, dentro de nossas possibilidades, a aventura cotidiana de cada banal, ou extravagante, ou apenas indispensável opção?”

***

“Assumir um tom diferente ou mudar qualquer situação, ser o soldado com passo diferente, pode ser muito penoso: exige determinação, informação, ação fora da nossa geral ambigüidade. Mesmo em situações difíceis, mesmo sofrendo, queremos e não queremos mudar. Queremos e não queremos repensar a vida. Falsamente livres nesta que se diz uma sociedade liberada, tangidos por desejos e chamados de toda sorte, nosso território é a contradição: comodismo ou heroísmo, o que escolher?"

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